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Brasília

Ossadas humanas são sinônimos de mistério e o caminho para esclarecer crimes

Arquivo Geral

26/03/2018 6h58

Foto: Myke Sena

Jéssica Antunes
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Era 10 de janeiro de 2018: duas ossadas foram encontradas em um matagal a cerca de 150 metros da margem da DF-460, que liga Taguatinga a Samambaia, por um homem que parou para urinar. Um crânio e fios de cabelo comprido e preto foram localizados no interior da mata, em um buraco próximo a uma árvore. Perto dali, em um poço raso, junto a roupas, havia um esqueleto inteiro, com o crânio à mostra.

A partir da ossada, a Seção de Antropologia Forense do Instituto Médico Legal (IML) do Distrito Federal identificou a vítima e a causa da morte de um deles. Raquel Rodrigues dos Santos estava desaparecida desde dezembro de 2017 e levou 35 facadas, especialmente no tórax, pescoço e lombar em um caso de susposto duplo homicídio. O segundo grupo de restos mortais, muito fragmentados, continua sob investigação.

Selfie

O trabalho, minucioso, difícil e delicado, chega a ter semelhanças com a ficção que tanto explora o tema de investigação forense. Hoje, no DF, até uma selfie pode ajudar a apontar a identidade de um crânio humano. O JBr. esteve na seção onde acontecem as investigações de esqueletos. Cristofer Beraldi Martins está há 14 anos na função e, como chefe, revelou o processo de apuração que já foi solicitado para tragédias nacionais e internacionais (veja quadro).

Sempre que alguém encontra um material que pode ser humano, a polícia é acionada e uma equipe pericial vai até o local, onde encontra desde corpos em avançado estado de decomposição até pequenos fragmentos de ossos. Inicialmente é feita avaliação preliminar: “Descobrir se é humano é a primeira grande questão”, explica. No local, é feito um trabalho minucioso. “Parece com arqueologia, com varreduras com pincel. A diferença entre fragmento de osso e pedra é delicada”, garante.

Depois de colhidas as informações inicia-se a investigação, que nada mais é do que um estudo de tudo o que aqueles elementos, fragmentos e ossadas podem dizer sobre quem era aquele indivíduo. “Se há um documento perto do corpo, há indício de onde começar a procura, mas não define identidade. O processo é lento, técnico e comparativo”, explica.

Família ajuda

O modo mais fácil de identificação é quando um familiar reclama um desaparecido. Isso porque é possível fazer exame de DNA ou comparar com uma radiografia feita em vida. A partir de uma sobreposição de imagens, pode-se identificar o trabeculado ósseo, um desenho único do interior do osso feito por tecido modelado, que funciona como uma impressão digital. Também pode ser feito com base na odontologia. “É a forma mais interessante, barata, rápida e segura”, diz.

Que tiro foi esse? Ou foi facada? Morte natural?

Um grande desafio é a definição da causa da morte. Há casos simples, como orifícios de projétil de arma de fogo. “Em outras situações pode ser tênue: uma ponta de arma branca que encontro em um osso, uma costela fraturada com sinal de reação vital. Encontrar esses pequenos vestígios e diferenciar se foi em vida ou pós-morte é sempre um desafio, mais difícil que na necrópsia com o cadáver fresco, mas conseguimos chegar à causa da morte em grande número de vezes”, explica Cristofer.

A morte natural, por sua vez, é ainda mais complicada de identificação, exceto em casos que a doença se manifeste em ossos ou restos de partes moles, como um tumor, deformidade ou síndrome que altera o esqueleto. “A gente trabalha com a verdade real. Afirmo o que tenho elementos para demonstrar e consigo reproduzir na prática. Se não pudermos fazer afirmação categórica, dizemos que não há elementos suficientes para determinar a causa”, aponta.

Quem e onde

Recursos humanos em quantidade e qualidade são diferencial para o sucesso das investigações, garante Cristofer. De acordo com ele, o laboratório é um dos mais atuantes do Brasil e conta com quatro peritos médicos-legistas, além de dois odontólogos. Foi em 2016 o último edital de concurso incluindo médicos-legistas na PCDF com remuneração inicial de mais de R$ 15 mil. Foram 20 nomeações e 40 cadastros reserva.

Mas antropologia forense é uma especialidade multi e transdisciplinar e, segundo o chefe da seção, inclui profissionais de odontologia forense, sociólogos, antropólogos, biólogos e da carreira de Serviço Social. Cristofer considera que o laboratório é “relativamente bem demandado”, com cerca de cinco casos mensais.

A dificuldade fica por conta das instalações físicas. A Seção de Antropologia Forense funciona em uma ala do prédio do Instituto Médico Legal, no Complexo da Polícia Civil do Distrito Federal, localizado no Sudoeste. É um dos prédios mais antigos da área. “A gente se vira para conseguir trabalhar”, diz o chefe. Segundo a PCDF, o projeto do novo prédio está em fase final de licitação. “Depois de concluído, o processo de licitação vai para execução da obra, que deve durar, aproximadamente, cerca de quatro anos. O valor aproximado está estimado em R$ 70 milhões”, informou a corporação, que espera começar a obra ainda neste ano.

Para identificar, defeitos são “fantásticos”

“O defeito é a coisa mais fantástica para identificação humana. Não gostamos de defeito em nós, mas o que diferencia geralmente é isso”, ressalta o legista. A maneira que um osso cicatriza após quebrar é única, assim como a localização. Também são diferenciais um dente quebrado, uma prótese mamária ou odontológica colocada, pinos e placas, marcas de cirurgias, de traumas ou alterações anatômicas de nascença. Tudo pode indicar a identidade.

“Temos um caso de identificação por prótese, que tinha número de série que batia com prontuário de médico. Temos caso de um carbonizado que o cadáver se destruiu por completo e não sobraram materiais biológicos, mas os implantes estavam intactos”, exemplifica.

Às vezes, porém, a pessoa não tem acesso a radiografia ou o documento tem qualidade ruim e entra o auxílio de fotografias, método que é aperfeiçoado. “A era de selfies permite fotografias de boa qualidade e, muitas vezes, com sorrisos, que mostram os dentes e consigo ter referencias boas do ponto de vista odontológico. Faço fotografia no mesmo ângulo e superposição crânio-fotografia. É um elemento que em muita situações consigo estabelecer a identidade”, revela.

O uso do DNA é difícil em casos avançados de putrefação porque o material genético pode estar fragmentado e contaminado por bactérias.

A extração é mais difícil e cara e vale-se de familiares. Nesse ponto, segundo o médico, entra um entrave: muitas vezes as pessoas acham que são parentes, mas não são e não compartilham o mesmo material genético. “É delicado e uma ferramenta difícil em alguns casos”, resume.

Identificação negativa

A investigação, porém, não paralisa caso não haja comparadores. “Fazemos identificações muito úteis para a polícia, como o sexo, estatura e idade estimada, importantes para a identificação negativa de possíveis casos”, conta o médico.

A diferenciação de feminino e masculino pode se dar pelas estruturas ósseas, diferentes já que a massa muscular difere e interfere no formato do osso. O deles costuma ser mais grosseiro e robustos, enquanto o delas é mais delicado. É a diferença morfológica mais importante entre os sexos, o que pode garantir com alta probabilidade a identidade sexual do indivíduo, indica o professor.

A idade estimada pode ser tomada a partir da ossificação – a popular moleira do bebê se torna completamente fechada ao passar dos anos, por exemplo. A precisão varia em uma margem de segurança de cinco anos. A estatura, por sua vez, é indicada a partir da soma do comprimento dos ossos mais longos do corpo humano, como fêmur e tíbia, e tem precisão de cerca de três centímetros para mais ou menos. “Essas análises antropológicas conseguem dar dinamismo à investigação porque de forma rápida e, de certa forma, barata, consigo dar a identificação negativa do cadáver”, afirma.

O tempo depende de cada caso, o próprio preparo dos ossos para início das investigações pode demorar cerca de 30 dias. Nesse processo, inclui a remoção de gorduras, geralmente por fervura, e das partes moles mecanicamente.

A Seção de Antropologia Forense do Instituto Médico Legal do Distrito Federal já foi acionada para atuar em grandes tragédias na América Latina — e também contribuiu com a história brasileira

INCÊNDIO NO PARAGUAI – AGOSTO DE 2004: Ajudou a identificar as vítimas de um incêndio em um supermercado de três andares em Assunção, no Paraguai, que deixou 374 mortos. O fogo demorou sete horas para ser controlado pelos bombeiros. A causa do incidente foi, supõe-se, uma chaminé defeituosa, por onde escapavam gases inflamáveis quentes no teto.

ACIDENTE DA GOL – SETEMBRO DE 2006: Trabalhou no segundo maior desastre aéreo brasileiro, quando duas aeronaves voando em direções opostas chocaram suas asas esquerdas no ar. As 154 pessoas que estavam a bordo do Boeing 737-800 da Gol, entre tripulantes e passageiros, morreram na queda na mata densa da Amazônia. O avião fazia o voo 1907 e havia saído de Manaus, faria escala em Brasília, e teria como destino final a cidade do Rio de Janeiro.

TERREMOTO NO PERU – AGOSTO DE 2007: Contribuiu nas investigações de 513 mortes e 1.090 feridos em um tremor de 8 graus na escala Richter arrasa a costa do Peru. É considerado um dos mais graves sismos dos últimos 20 anos.

COMISSÃO DA VERDADE – 2011: Integrou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou as violações de direitos humanos cometidas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 e identificou 434 casos de mortes e desaparecimentos, como aqueles da Guerrilha do Araguaia. Ao mesmo tempo, identificou desaparecidos políticos daquele período pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMPD).

Saiba mais

– Se a ossada for identificada e houver uma família ou reclamante, os restos mortais são entregues para sepultamento e enterro.

– Caso não seja encontrada a identidade, os restos mortais podem ser enterrados como de indigentes ou ficam na própria seção do IML.

– Eventualmente, doações são feitas para estudo e pesquisa, dentro do que prevê a lei. No entanto, aqueles oriundos de mortes violentas não podem ser entregues. Quando não identificada a causa da morte, a ossada não é repassada a instituições de ensino.

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