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Viva

Terror tem humor venenoso

Arquivo Geral

07/08/2017 7h00

Atualizada 06/08/2017 21h26

Reprodução/Internet

Álvaro Costa e Silva
Especial para o Jornal de Brasília

Shirley Jackson já é craque nas primeiras linhas. Seu romance recém-lançado Sempre Vivemos no Castelo começa assim: “Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. Volta e meia penso que, se tivesse sorte, teria nascido lobisomem, porque os dois dedos médios das minhas mãos são do mesmo tamanho, mas tenho de me contentar com o que tenho. Não gosto de tomar banho, nem de cachorros nem de barulho”.

O parágrafo inicial de The Haunting of Hill House (A Assombração da Casa da Colina na edição da Francisco Alves de 1983, hoje uma raridade de alto preço nos sebos) é reconhecido como um dos mais intrigantes começos da moderna ficção americana: “Nenhum organismo vivo pode existir com sanidade por longo tempo em condições de realidade absoluta; até as cotovias e os gafanhotos, pelo que alguns dizem, sonham. Hill House, insalubre, permanecia solitária em meio às montanhas, guardando em si a escuridão. Permanecera assim por 80 anos e poderia continuar dessa forma por mais 80. (…) O silêncio permanecia inalterável contra a pedra e a madeira de Hill House, e o que por lá andasse, andava sozinho”.

Stephen King – um dos muitos admiradores da autora, ao lado de Donna Tartt, Neil Gaiman, Richard Matheson, Joyce Carol Oates – considera a descrição acima “o tipo de epifania que todo escritor almeja: palavras que de alguma forma transcendem a palavra”.
“Shirley… quem?”, você está se perguntando. De óculos estilo gatinho, gordinha e rosto assustado na maioria dos fotos, Shirley Hardie Jackson (1916-1965) parecia a vizinha da frente.

Mas era uma talentosa escritora, que gozou de certa popularidade em vida, publicou um conto que enfureceu leitores e, ao morrer, entrou no limbo. Aos poucos, recuperou o prestígio, a ponto de ter, em 2010, sua obra incluída no catálogo da Library of America.
Na década de 1940, enquanto cuidava de quatro filhos, Shirley escrevia divertidas histórias sobre a vida doméstica, que faziam a delícia das assinantes da Mademoiselle, Good Housekeeping e Woman’s Day.

Foi nessa época que teve um estalo, na fila do caixa, na hora de pagar as compras, e o conto The Lottery lhe veio todo à cabeça.

Publicado em 1948 na revista The New Yorker, o relato provocou centenas de cancelamentos de assinatura da publicação e milhares de cartas indignadas.
A Loteria – existe uma versão em português na N.T – Revista Literária em Tradução, por Ana Resende — narra um ritual macabro. É bom parar por aqui, para não estragar a surpresa de quem ainda não leu e pretende ler.

Apesar da enorme repercussão negativa, com o tempo a história foi adaptada para rádio, teatro, televisão, coreografada para balé e virou figurinha fácil em antologias.

Escritora era chamada de bruxa

Ao lado de A Assombração da Casa da Colina (1959) – que inspirou um filme de Robert Wise, estrelando Claire Bloom-, Sempre Vivemos no Castelo (1962) é a obra mais famosa da autora. Também é a última que publicou (e vem aí uma adaptação para o cinema, com produção de Michael Douglas). O livro está mais para o claustrofóbico do que para o gótico. Com doses de humor negro e venenoso.

Numa pequena cidade da Nova Inglaterra, as irmãs Blackwood vivem na antiga casa da família, quase sem contato com outras pessoas. Por companhia, as irmãs têm o gato Jonas e um velho tio gagá, Julian, que passa os dias escrevendo e reescrevendo a história do clã. Mas quem narra de verdade é Merricar, a caçula, e em torno da sua voz econômica e agressiva se estabelece o clima opressivo do romance.

Em seu realismo irreal, Shirley Jackson, com estilo que lembra Flannery O’Connor e as bizarrices de David Lynch, consegue que personagens tão estranhas surjam simpáticas aos olhos do leitor. Mas é tudo aparência e, por trás de tudo, existe uma face chocante.
Incompreendida em seu tempo, a escritora foi acusada de ser uma bruxa. Diziam que fizera um boneco de vodu do editor Alfred Knopf para fincar-lhe alfinetes.

Ela não desmentia os rumores, lia cartas de tarô, citava obras de magia negra e seus 11 gatos tinham nomes de demônios.

Alcoólatra e viciada em anfetaminas, Jackson morreu aos 49 anos, de ataque no coração. Sofria de obesidade mórbida, depressão e ansiedade. Nos últimos meses de vida, era incapaz de sair do quarto: como suas personagens em “Sempre Vivemos no Castelo”.

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