Os caminhos de Deni, 30 anos, e Odete, 50, nunca se encontraram, mas se assemelham. Ambas sofreram violência dos ex-maridos, tiveram de sair de casa com os filhos, mas ainda têm frescas na memória as lembranças de ameaças e agressões sofridas por anos a fio. O que as une também as torna irmãs de luta, mesmo sem terem se visto. Elas foram auxiliadas pela 1ª Promotoria de Justiça Especial Criminal e de Defesa da Mulher em Situação de Violência Doméstica, do Ministério Público do Riacho Fundo, e aprenderam a se defender.
Em 2014, a ala comandada pelo promotor Carrel Ypiranga recebeu 60 solicitações de estudo, encaminhadas ao Setor Psicossocial (Setps) da unidade, e promoveu visitas domiciliares a quase metade delas. Isso faz parte de uma política inovadora para o MP, que evita a fuga de vítimas dos processos que podem livrá-las de um agressor.
A iniciativa passou a ser rotina da promotoria quando Carrel, também formado em Psicologia, instruiu os profissionais do Setps a irem até as mulheres que tivessem perdido ou faltado às reuniões pós-denúncia. “Sabemos do contexto complexo envolvendo violência doméstica. O que mais preocupava era a agressão psicológica, e quando a mulher não queria mais ajuda”, explica.
“Perdi a identidade”
Tal qual uma sanguessuga, o ex-marido de Deni extraiu sua essência, suprimindo- a lentamente ao longo de dez anos. O homem, descrito como “alguém influente”, nunca encostou um dedo nela, mas nem precisou. O abuso psicológico e moral foi pior do que qualquer tapa.
“Em todo esse tempo, eu nunca pude ter meu próprio carro nem sabia o valor do contracheque dele. Eu tinha de ficar quieta e me submeter. Os psicólogos disseram que sofri violência velada”, relata a moça.
Realidade bem distante da fantasia
Deni, hoje com 30 anos, começou a namorar o ex-marido aos 17 anos. Admite que, à época, estava encantada com a possibilidade de se envolver com um homem mais velho e de boa posição social. “Só que encanto de adolescente passa”, lamenta. Antes dos 20 anos, ela já estava casada, morando junto. Menos de um ano e meio depois, veio a primeira crise.
“Saí de casa, mas ele hackeou meus e-mails. Ele tirava foto de mim na rua, colocava gente para me seguir”, relembra, com angústia. Sua mente, que havia acabado de deixar a adolescência e ainda amadurecia a ideia de o casamento não ser a finalidade da vida, a levou a uma conclusão que lhe imputou sofrimento por dez anos. “Pensei que só voltaria a ficar em paz se voltasse para ele, e foi o que fiz. Eu tinha crises de choro, mas, para os outros, eu sorria, como se nada tivesse acontecido”, relata. Nesses dez anos, a moça ainda teve duas filhas, que se tornaram “a razão de sua vida”.
Só nos últimos meses, após acolhimento do MPDFT, quando saiu de casa com os filhos e se instalou com a mãe, voltou a ter paz.
Liberdade após vencer o medo
Refém de um relacionamento conturbado, Deni tinha medo de iniciar um processo na Justiça, perder e a situação ficar ainda pior do que antes. O ex-marido dizia que se ela saísse de casa para morar com a mãe, que a apoiava, poderia ser considerado um abandono de lar. Era mentira, mas a moça não sabia à época e permaneceu sob influência do homem. Somente após receber sugestão de amigos, procurou o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), mas, a princípio, deixou a denúncia para lá, sentindo-se desmotivada.
O caso a chamou a atenção da promotoria de Carrel Ypiranga e, no dia seguinte, Deni recebeu visita de uma assistente social e foi acolhida também por uma psicóloga. Em dezembro, enfim, ela reuniu força e argumentação jurídica para se desligar do homem que a atormentava e saiu de casa, protegida por medida judicial e amparada pela mãe.
Visita
A ida a casa das vítimas, no entanto, é algo delicado, conforme explica o promotor Carrel Ypiranga. “Precisamos ter cuidado para não confundir acompanhamento com intromissão. Há necessidade que a pessoa nos procure. Não interferimos no desejo dela de estar na relação, mas agiremos se houver ameaça ou injúria”, detalha.
A assistente social do Setor de Psicossocial (Setps) Solange Félix, de 41 anos, conta que é preciso esclarecer todas as etapas do processo para evitar o senso comum e, consequentemente, a desistência da vítima.
“Alguns temem que o agressor seja preso e pensam em não ir adiante”, explica. E acrescenta: “Em muitas oportunidades, a mulher quer apenas se separar, quer somente que a violência pare”.