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Brasília

Serviço ajuda vítimas de violência doméstica a recomeçar

Arquivo Geral

05/04/2015 6h00

Os caminhos de Deni,   30 anos, e Odete,   50, nunca se encontraram, mas se assemelham. Ambas sofreram violência dos ex-maridos, tiveram de sair de casa com os filhos, mas ainda têm frescas na memória as lembranças de ameaças e agressões sofridas por anos a fio. O que as une também as torna irmãs de luta, mesmo sem terem se visto. Elas foram auxiliadas pela 1ª Promotoria de Justiça Especial Criminal e de Defesa da Mulher em Situação de Violência Doméstica, do Ministério Público do Riacho Fundo, e aprenderam a se defender.

Em 2014, a ala comandada pelo promotor Carrel Ypiranga  recebeu 60 solicitações de estudo, encaminhadas ao Setor   Psicossocial (Setps) da unidade, e promoveu visitas domiciliares a quase metade delas. Isso faz parte de uma política  inovadora para o MP, que evita  a fuga de vítimas dos processos que podem livrá-las de um agressor.

A iniciativa passou a ser rotina da promotoria quando Carrel, também formado em Psicologia, instruiu os profissionais do Setps a irem até as mulheres que tivessem perdido ou   faltado às reuniões pós-denúncia.  “Sabemos do contexto complexo envolvendo violência doméstica. O que mais   preocupava era a agressão psicológica, e quando a mulher não queria mais ajuda”, explica.

“Perdi a identidade”

Tal qual uma sanguessuga, o ex-marido de Deni extraiu sua essência, suprimindo- a lentamente ao longo de dez anos. O homem, descrito  como “alguém influente”, nunca encostou um dedo nela, mas nem precisou. O abuso psicológico e moral  foi pior  do que qualquer tapa.

“Em todo esse tempo, eu nunca pude ter meu próprio carro   nem sabia o valor do contracheque dele. Eu tinha de ficar quieta e me submeter. Os psicólogos disseram que sofri violência velada”, relata a moça.

Realidade bem distante da fantasia

Deni, hoje com   30 anos, começou a namorar o ex-marido aos 17 anos. Admite que, à época, estava encantada com a possibilidade de se envolver com um homem mais velho e de boa posição social. “Só que encanto de adolescente passa”, lamenta. Antes dos 20 anos, ela já estava casada, morando junto. Menos de um ano e meio depois, veio a primeira crise.

“Saí de casa, mas ele hackeou meus e-mails. Ele tirava foto de mim na rua, colocava gente para me seguir”, relembra, com angústia.  Sua mente,  que havia acabado de deixar a adolescência e ainda amadurecia a ideia de o casamento não ser a finalidade da vida, a levou a uma conclusão que lhe imputou sofrimento por dez anos. “Pensei que só voltaria a ficar em paz se voltasse para ele, e foi o que fiz. Eu tinha crises de choro, mas, para os outros, eu sorria, como se nada tivesse acontecido”, relata. Nesses dez anos, a moça ainda teve duas filhas, que se tornaram “a razão de sua vida”.

Só nos últimos meses,  após acolhimento  do MPDFT, quando saiu de casa com os filhos e se instalou com a mãe, voltou a ter paz.

Liberdade após vencer o medo

Refém de um relacionamento conturbado, Deni tinha medo de iniciar um processo na Justiça, perder e a situação ficar ainda pior do que antes. O ex-marido dizia que se ela saísse de casa para morar com a mãe, que a apoiava, poderia ser considerado um abandono de lar. Era mentira, mas a moça não sabia à época e permaneceu sob influência do homem. Somente após receber sugestão de amigos, procurou o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), mas, a princípio, deixou a denúncia para lá, sentindo-se desmotivada.

O caso a chamou a atenção da promotoria de Carrel Ypiranga e, no dia seguinte, Deni recebeu visita de uma assistente social e foi acolhida também por uma psicóloga. Em dezembro, enfim, ela reuniu força e argumentação jurídica para se desligar do homem que a atormentava e saiu de casa, protegida por medida judicial e amparada pela mãe.

Visita

A ida a casa das vítimas, no entanto, é algo delicado, conforme explica o promotor Carrel Ypiranga. “Precisamos ter cuidado para não confundir acompanhamento com intromissão. Há necessidade que a pessoa nos procure. Não interferimos no desejo dela de estar na relação, mas agiremos se houver ameaça ou injúria”, detalha.

A assistente social do Setor de Psicossocial (Setps) Solange Félix, de 41 anos, conta que é preciso esclarecer todas as etapas do processo para evitar o senso comum e, consequentemente, a desistência da vítima. 

“Alguns temem que o agressor seja preso e pensam em não ir adiante”, explica. E acrescenta: “Em muitas oportunidades, a mulher quer apenas se separar, quer somente que a violência pare”.

Coragem permitiu mudança
 
A situação de  Odete, agredida pelo ex-marido, um policial militar, só mudou no fim do ano passado, quando ela teve coragem de ir ao Ministério Público, onde foi atendida pela promotora Cláudia Tomelin. “Eu falei: ‘doutora, me ajuda!”, desabafa. E a partir daí, contando também com o acompanhamento, especialmente por telefone, moveu ação na Justiça contra o agressor e recebeu compensação parcial para a cirurgia no joelho.
 
Sua luta, agora, é para que o homem pare de   persegui-la. Ela também deseja consertar o nariz, que foi  quebrado. Hoje, ela respira com dificuldades e isso é motivo de sofrimento. “A promotora me deu um abraço quando contei minha história e chorou comigo. Aquilo me fez sentir esperançosa”, emociona-se.
 
Pena branda
 
A promotora Cláudia Tomelin explica que situações como a de Odete são monitoradas por pelo menos dois anos. “O agressor tem que respeitar as medidas protetivas e comparecer a reuniões periódicas”, esclarece. Ela lamenta que a lei ainda tenha penas brandas, mas salienta o acompanhamento  como uma das medidas para apaziguar a dor física e mental das vítimas.
 
Para as vítimas Deni e Odete, no entanto, tudo nasce da descoberta de que a ajuda é possível e necessária. Deni acredita que muitas mulheres não entendem ser vítimas de violência, muitas vezes psicológica, e alerta para ninguém se subtrair em razão de outro alguém. Odete quer que ninguém sofra por uma pessoa desregulada. “Ninguém tem que aguentar”, aconselha.
 
Cicatrizes pelo corpo
 
A hoje desempregada Odete carrega as sequelas do comportamento agressivo do ex-marido, um policial militar.   Os pinos que sustentam o joelho direito e as cicatrizes na cabeça são marcas de uma violência     física, ignorada pelos superiores do homem, segundo ela.
 
“Ele dizia que eu ‘ia ver’ se falasse qualquer coisa, e eu tinha muito medo dessa frase”, conta a mulher, que hoje mora reclusa em um condomínio bem afastado de onde vivia, por medo de ser encontrada. “Um dos meus filhos já trocou tiros com ele. Uma vez chegou uma viatura da PMDF, depois de ele me bater, e não deu em nada porque ele também era (militar)”, recorda-se.
 
Odete o conheceu  em 1998. Em 2004, o casal adotou uma menina, que   somou-se aos outros três filhos da mulher,   de outro casamento. “Ele era rígido com eles, mas parecia alguém normal”, diz.
 
Agressões
 
Em 2006, no entanto, veio o primeiro tapa, e dali em diante muitos outros se sucederam, dando lugar a socos, pontapés e tentativas de homicídio. “Uma vez ele viu uma amiga minha, que tinha bebido demais, tentar me dar um selinho e espalhou  que eu era ‘sapatão’. Ele me difamou para o Riacho Fundo inteiro”, conta, entre lágrimas.
 
Uma das agressões mais severas foi há dois anos, quando ele quebrou o nariz de Odete a socos. “Ele saiu de casa depois de um tempo, mas às vezes voltava só para me bater. Chegou a ir até a casa da minha mãe só para fazer isso”, expõe.

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