Depois da tempestade vem a contabilização de prejuízos. Lojas e garagens alagadas, equipamentos, alimentos e carros danificados. Pelas ruas da Asa Norte, a lama e sujeira acusavam a enxurrada que passou pelo local. Na noite de terça-feira, os bombeiros atenderam a 287 ocorrências da chuva que atingiu a capital – metade do total previsto para dezembro, uma média de 246mm, desabou em três horas.
“Estamos entrando no verão e a chuva é característica da estação. Continuará chovendo até março, mas é claro que em intensidades diferentes”, explica Manuel Rangel, do Instituto Nacional de Meteorologia. Para este período, é comum que haja sol forte ao longo do dia e pancadas de chuva no fim da tarde. “O problema é que, sem estrutura, a cidade não comporta as chuvas”, declara.
A perspectiva é pessimista enquanto não é colocado em ação o Programa Águas do DF, que pretende eliminar os pontos críticos de alagamentos no Plano Piloto e em Taguatinga, aumentando as galerias pluviais e construindo bacias de detenção para filtrar as águas que chegam ao Lago Paranoá
“A curtíssimo prazo, não há muita solução”, revela o especialista em saneamento e recursos hídricos Ricardo Silveira Bernardes. Isso porque obras de drenagem, que ao menos minimizariam os problemas, levam meses. A medida paliativa seria limpeza de bocas de lobo, caixas de passagem e ruas. “Essas providências, inclusive, deveriam ser tomadas antes da chuva”, analisa.
O especialista alerta que, em muitos casos, não há alternativa para o escoamento natural. E a conscientização, diz, deveria começar na seca: “Os problemas só aparecem quando chove. É um Deus nos acuda e aí não adianta mais. Não dá tempo”.
Bernardes acredita que falta gestão de risco. Sabendo que uma área é propícia a alagamentos, é possível desviar o trânsito e fazer trabalhos de orientação, para evitar a cena de carros boiando nas tesourinhas. “É possível, também, fazer com que a vegetação dos jardins estimule a infiltração das águas”, diz o especialista, que alerta: a cada camada de asfalto, a altura do meio-fio diminui.
Rastro de destruição no Plano Piloto
As inundações, previsíveis, ocorrem geralmente nas tesourinhas, garagens e lojas no subsolo. Árvores caem, o aeroporto é fechado e a população fica ilhada. Dessa vez não foi diferente. A W3 Norte amanheceu ontem com um rastro de lama. Na 311 Norte, uma calçada foi destruída e, no subsolo, os estabelecimentos foram interditados após a água ultrapassar os dois metros de altura.
Na mesma quadra, no estacionamento de um prédio, a água acumulou 1,20m de altura e pode ter danificado mais de 80 veículos. “Geralmente, a água sobe dez, 15 centímetros no máximo. Teve motorista que tentou tirar o carro, mas apagou e não conseguiu sair”, conta o porteiro Jean Berbert. Segundo ele, em dez minutos a água subiu mais de um metro.
Na 402 Norte, um carro ficou pendurado na entrada da garagem. Michelle Jansen, 35, estava dormindo quando o porteiro recomendou que ela tirasse o automóvel dali. “Quase não consegui. O volume da água já era muito forte. Estacionei do lado de fora e voltei para o apartamento”, lembra. Uma hora depois, foi avisada de que “o carro estava rodopiando na rua”. Outro carro, que permaneceu no interior, ficou completamente danificado.
Subsolo é castigado
Dono de um estúdio de fotografia, Rodrigo Carletti, 40, estima prejuízo de pelo menos R$ 120 mil: “Quando o espaço for liberado, o jeito é tentar secar o que der para ver o que dá para recuperar”.
Adriano Teles, 29, é sócio da academia ao lado do estúdio. Ele conta que, na noite de terça-feira, após o expediente, observou com amigos a intensidade da chuva. “Ela foi aumentando até derrubar uma parte da mureta e a água começar a entrar na loja. Começamos a tirar as coisas quando o vidro de proteção quebrou. Em 10 minutos, a água subiu 2,5 metros”, lembra. Adriano contabiliza que o estrago pode chegar a R$ 300 mil em eletrônicos, estoque e equipamentos danificados.
“Felizmente, a perda foi material”, destaca o jovem, contando que um funcionário dormia dentro da academia. “Ele costuma limpar tudo depois que fechamos e depois descansar um pouco. Quando acordou, não conseguiu sair. Tivemos que chamar os bombeiros”, afirma.
Para retirá-lo, foi necessário arrancar a grade de proteção soldada no chão. “Foi desesperador. A gente não sabia em que altura estava a água, se iria subir, se ele conseguiria recuperar. Ainda bem que ele ficou bem. Nosso prejuízo, aqui, é recuperável”, relata.
Investimento se foi por água abaixo
Quem conhece bem os estragos que a região da 402 Norte enfrenta é uma mulher que se identificou apenas como Branca, de 57 anos. Proprietária de um restaurante, viu todo o estoque ser tomado pelas águas. “Moro há 23 anos na quadra e tenho certeza que isso poderia ser evitado. O pior é que vai acontecer de novo. É um desrespeito com a gente que paga impostos. Eu perdi tudo e já estou preocupada com a próxima chuva”, reclamou.
Igor Reis, 27 anos, havia acabado uma sessão de tatuagem quando a chuva começou. “Estava arrumando minhas coisas para ir embora quando percebi que o volume de água, na rua, era grande e começou a entrar no estúdio”, lembra. Ele revela que chegou a pensar que os vizinhos estivessem jogando a água na direção da loja, na 711 Norte, mas era apenas a enxurrada ultrapassando as grades de proteção.
Pela janela, era possível ver a água ultrapassando um metro e meio de altura. “O vidro estourou e, em questão de três minutos, a água já estava no joelho. Em cinco, chegou na cintura”, detalha o tatuador que, desesperado, ainda tentou salvar o equipamento de trabalho. “Tomei muito choque. Cheguei a cair no chão. Mais tarde os bombeiros disseram que tive sorte de não ter acontecido nada grave comigo”, conta.
Nada conseguiu ser salvo: material descartável, máquinas de trabalho, sofá, móveis, livros, revistas e artes. “É um material que estamos comprando há quase dez anos. Não é algo fácil de recuperar. Cada máquina custa uns R$ 800”, lamenta Guga Baygon, 37 anos. O prejuízo ultrapassa os R$ 20 mil.
“Agora vamos começar do zero, procurar outra loja. Aqui não dá. É como se fosse uma bomba-relógio. Em uma próxima chuva, pode acontecer de novo. Foi todo um investimento por água abaixo”, destaca Baygon.