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Morando Fora

Longe de casa, no consultório médico

Arquivo Geral

21/01/2019 11h51

Atualizada 04/02/2019 20h39

Sem um fiapo de voz, devido a complicações de alergia a um simples resfriado, e abençoada com a visão dos 50 tons de cinza e de off white que se pode ter no inverno de janeiro na Suíça, escrevo a coluna dessa semana. Não é sobre a neve e a chatice do frio e nem sobre a vontade de estar na praia do Rio de Janeiro. É sobre o desafio de se comunicar com médicos estrangeiros quando se vive no exterior. Além da dificuldade da língua, enfrenta-se a barreira da cultura. E eu, no caso, ainda tive que me desenrolar em alemão e sem voz.

Bem, para os mais curiosos, escrevi quatro páginas explicando minha situação. Coitado do médico, teve que ler minha letra e meus erros gramaticais.

Cultura diferente, outras percepções
A barreira da comunicação, nesse terreno, é abrangente. Envolve percepções de um bom atendimento, que variam de sociedade, mede a simpatia e a empatia entre as partes envolvidas, a compreensão da dor ou do problema do paciente. Sim, porque a diferença cultural pode amplificar determinado problema e inclusive sensibilizar o interlocutor para mais ou para menos. Aliás, estudos mostram que migrantes sentem mais dor que os locais devido à solidão, incompreensão etc, etc.

Peguei emprestado um interessante estudo, publicado na Health Education Research, em 2015, sobre Percepções de Médico e Pacientes sobre competência intercultural e conformidade médica. De acordo com o estudo de S. Ohana e R. Mash, a cultura dita como sintomas de doenças são percebidos. Na mesma pesquisa, os acadêmicos citam um outro cientista, Ku L, Flores G, para explicar que grupos diferentes se relacionam de forma distinta sobre instruções do médico.

Entendimento influenciado pela cultura
“Algumas culturas veem a doença e saúde como parte do destino de uma pessoa e, assim, não acredita que o tratamento médico possa influenciar o resultado da doença do paciente e gerar uma não adesão ao tratamento, inclusive”.

O meu otorrino
O meu caso, que me inspirou e o uso para ilustrar o texto, remonta uma história antiga. O otorrino no qual eu fui, para resolver o problema da voz, é um já velho médico conhecido aqui da Suíça, um dos primeiros que consultei quando cheguei em 2005. Só que quando entrei no consultório dessa vez, não era mais ele quem atendia, mas seu filho. Havia se aposentado aos 70 anos, me explicou o filho doutor.

Quis dizer a ele que seu pai tinha sido um médico maravilhoso – minha percepção, baseada na minha cultura latina, voltada à oralidade, ao toque. Não pude pela falta de voz. Ele era ótimo não só pela competência profissional, mas pelo ser humano que era, na forma como conseguia se conectar. Ele não falava português, mas tinha interesse em várias línguas, me confidenciou uma vez. Queria entender seus pacientes, e assim soltava algumas palavrinhas para me alegrar.

Um dos episódios que mais me marcaram com esse médico foi o fato de que, nas minhas duas gravidezes, meu nariz entupiu durante nove meses. Tentava comprar remédio e nenhum farmacêutico queria me vender. Tinha que mentir e dizer que era para meu marido tamanho meu desespero.

Empatia
Marquei uma consulta para perguntar se poderia fazer mal ao bebê, que eu não estava aguentando aquela situação de não poder respirar pelo nariz. Esse médico olhou para mim e disse, do alto de sua experiência e calma: “pode comprar e usar, sem problema. Faz mal só para a senhora, para o bebê não. É normal acontecer isso em algumas mulheres. Mas não precisa ficar nervosa, aproveite esse momento único na sua vida, a gravidez é um presente, um momento que não volta da mesma maneira. E no mais, bom parto”. Esse homem me disse isso há 13 anos. Até hoje me lembro de suas palavras, de sua doçura e compaixão.

Mas infelizmente não é sempre assim, nem no nosso país e muito menos no exterior, com todos os fatores culturais em jogo. Eu mesma já escrevi no meu blog pessoal um artigo sobre as dificuldades de se ir a uma ginecologista na Suíça e a quebra de tabus que isso implica, devido à falta de um roupão para esconder a nudez. Nesse artigo, eu questionava o fato de ouvir reclamação entre tantas brasileiras sobre esse aspecto e o perigo de não fazerem o exame de Papanicolau por vergonha de tirar a roupa no consultório.

Ainda de acordo com o estudo de S. Ohana e R. Mash, quanto mais os pacientes percebem a como culturalmente competente, maior a probabilidade de cumprir suas recomendações médicas. O imbróglio avaliação e percepção do médico chega a ser motivo de conflito entre casais de diferentes culturas. Enquanto a brasileira, em geral, prefere um profissional que converse mais com ela, já ouvi que marido suíço pode reclamar que a consulta demora demais e custa mais caro. Aqui paga-se um percentual sobre o tempo da consulta. Em culturas mais lineares, os pacientes preferem solução mais rápida e menos conversa.

Possíveis desencontros
A situação e o ambiente são complexos mesmo. Por isso, ao sentir-se incompreendido em uma consulta médica, tente explicar o porquê dos seus medos, seus sentimentos, como a questão é vista no seu país de origem. Médicos são seres humanos e nem todos têm ou foram treinados para desenvolver essa sensibilidade intercultural. Se não der certo, troque de profissional. Eu só queria dizer que o seu desconforto pode ser fruto de um desencontro de culturas.


Liliana Tinoco Bäckert é jornalista e tem mestrado em Comunicação Intercultural pela Universidade da Suíça Italiana. Carioca, tem dois filhos, é casada com um alemão e vive naquele país desde 2005, onde também trabalha como treinadora intercultural independente. Decidiu transformar o próprio choque cultural em combustível para ajudar outros brasileiros que já vivem fora ou que pretendem se lançar nessa aventura globalizada.

 

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