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Literatura: Bardot e a desmistificação do real

Arquivo Geral

29/10/2018 7h00

Atualizada 28/10/2018 23h07

Foto: Divulgação

Eduardo Brito
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Quem diria, já escritora consagrada e pioneira do feminismo, Simone de Beauvoir focou-se em uma figura que, em princípio, pouco ou nada teria a ver com seu universo. Ela mesma, a garota Brigitte Bardot, que siderava o grande público, despertando tanto admiração quanto ódio. Mais, Simone de Beauvoir se debruçaria sobre Brigitte em artigos publicados por ela, pela primeira vez, em jornais norte-americanos, em traduções que supervisionava minuciosamente. Esses textos, três, acabam de ser publicados no Brasil, em Brigitte Bardot e a Síndrome de Lolita, o título do primeiro deles.

Beauvoir escreve sobre a atriz – e sobre o que acha que ela representa – como se decifrasse um enigma. O texto mostra as faces de uma mesma moeda: Brigitte, a menina, a mulher, a pessoa; e BB, a personagem, a estrela.

O texto se fundamenta essencialmente no jogo entre natureza e artifícios, bem como no jogo entre autenticidade da garota, incontestável, e a construção do mito, expresso na feminilidade e nas representações do corpo. Na visão de Simone de Beauvoir, a mulher-criança mostra seu caráter. Primeiro, na amoralidade, não imoralidade. Segundo, em uma nova e fascinante forma de erotismo e de sexualidade. Enfim, na mudança da relação entre presa e predadora, já que desempenha os dois papéis com absoluta naturalidade.

O que fascina a escritora e feminista é a criação de uma identidade que se separa dos modelos em vigor e dos campos de força sociais e simbólicos.
O volume reúne três escritos de Simone de Beauvoir: Brigitte Bardot e a Síndrome de Lolita (1959), O Que o Amor É — E o Que Não É (1965), e Uma Existencialista Observa os Americanos (1947). Traz, com isso, um atrativo a mais, o interesse, quase admiração, que a escritora passa a nutrir pelo american way of life.

Uma Existencialista Observa os Americanos ocupou duas páginas da edição de 25 de maio de 1947 dojornaL The New York Times e traz a seguinte legenda sobre a autora: “Simone de Beauvoir é filósofa, romancista, dramaturga e a existencialista número 2 da França (o primeiro, claro, é Jean-Paul Sartre). Ela recentemente completou uma viagem costa a costa neste país”. Essa viagem marcaria a autora, inclusive do ponto de vista pessoal.

Entre janeiro e maio daquele ano, ela viajou pela primeira vez à América. Foi uma viagem com agenda cheia de conferências e entrevistas – que lhe interessaram muito menos do que o padrão de vida dos locais, assim como sua moralidade e sua economia – e na qual conheceu um dos homens por quem mais foi apaixonada, o escritor Nelson Algren. Foi paixão à primeira vista, principalmente dela.

Mas não adianta: o que vai interessar mesmo o leitor é Brigitte Bardot. Tudo no texto de Beauvoir transpira liberdade e encantamento pelos filmes que levaram Bardot ao estrelato internacional. A estonteante loira francesa de 23 anos parecia à autora “o mais perfeito espécime dessas ninfas ambíguas. Vista de costas, seu corpo de dançarina, esbelto e musculoso, é quase andrógino”. O curioso é a recepção assinalada pela escritora de B.B. pelos públicos francês e americano.

Enquanto o primeiro a punia moralmente, o segundo a evocava como um novo ícone feminino, pelo modo como se comportava livremente com seu desejo, sem artifícios e cheia de ingenuidade infantil. É o que intriga Beauvoir.

Sobre os EUA, deslumbre e ceticismo

Uma Existencialista Observa os Americanos mostra uma literata tão deslumbrada quanto cética com relação aos Estados Unidos, para Simone uma nação que emergira apenas com a Segunda Guerra Mundial. “Ora, a América não é de modo algum como um deserto; quando se vem da Europa para cá, aqui se mostra mais como um paraíso”, escreve. Só que a escritora não mostra maior entusiasmo quanto ao futuro do país e deseja aos jovens, mesmo de forma incrédula, que o transformem numa civilização “comparável a Atenas e Roma”, e não em um “fato dentre outros fatos, num mundo que não terá ajudado a justificar”.

Brigitte Bardot and the Lolyta Syndrome, o mais chamativo, foi publicado em agosto de 1959 na revista americana Esquire: The Magazine for Men. Nele, Beauvoir destaca uma cena que a siderou.

Referindo-se a Brigitte, diz que “nada lança uma luz mais viva em sua personagem que o jantar de casamento no filme E Deus Criou a Mulher. Ela vai imediatamente para a cama com seu jovem marido. No meio do banquete, ela repentinamente aparece num robe de chambre e, sem se incomodar em sorrir ou sequer olhar para os convidados aturdidos, pega, debaixo de seus narizes, uma lagosta, um pedaço de frango, frutas e garrafas de vinho. Desdenhosa, vai embora tranquilamente com sua bandeja. Não dá a mínima para a opinião alheia: não tenta escandalizar, não exige nada, não é mais consciente de seus direitos que dos seus deveres. Segue suas inclinações. Come quando tem fome e faz amor com a mesma simplicidade”.

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