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Brasília

Estelionato: golpe na porta de albergue

Arquivo Geral

13/06/2016 6h30

Mateus Alencar

Manuela Rolim
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Eles estão frágeis. Longe de suas famílias. Alguns são dependentes químicos. Outros estão desempregados. O único bem que lhes restam é o nome limpo. Do lado de fora da Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias (Unaf), do Areal, entretanto, até isso é retirado deles. Muitos são vítimas de estelionato ao passar pelo portão do albergue.

Funciona assim: ao saírem do local, de vez ou momentaneamente, seja para trabalhar ou passear, os acolhidos são seduzidos por ofertas tentadoras. Os golpistas oferecem dinheiro em troca de uma compra grande no nome deles. São os “empréstimos”, famosos no local. As vítimas sabem que vão ficar inadimplentes, mas, naquela altura do campeonato, isso não importa. O valor a receber de imediato parece mais interessante.

Os autores são sanguessugas de vidas vulneráveis. E quem são eles? É o que a Polícia Federal investiga. O caso acontece há mais de ano na entrada da Unaf. Segundo os próprios albergados, os criminosos estão mais perto do que se imagina: encostados no muro externo da unidade. Não se sabe se alguém está acima do grupo ou se existe alguém que comanda o esquema de longe.

Até idosos

“Sei que acontece, mas a gente não pode fazer nada. Eles dizem assim: ‘Entra no meio que eu te dou um celular e mais R$ 1,5 mil’. Em contrapartida, a pessoa assina um contrato de compra de um carro, por exemplo. Já ouvi história de gente que comprou um veículo de R$ 50 mil e ficou com o nome sujo. Não é gente de dentro que pratica o estelionato, é de fora. Idosos já caíram no golpe. É uma realidade frequente”, relata um acolhido, que deixou a unidade e vive na rua, ali perto.

Ele diz que se sente mal pelos amigos quando vê a situação. Todos estão esquecidos ali, o que dá forças para eles aceitarem a proposta. “Já tentaram me assediar. Me ofereceram dinheiro para eu fazer uma compra no meu nome. Também me chamaram para participar do esquema. Eu não caí em nenhuma das opções, nem vou cair. Não chegamos a negociar valores, não deixei chegar a esse ponto. Mas isso muda de acordo com o perfil da vítima. Se for alguém mais fragilizado, a quantia oferecida é menor. Uma pessoa mais consciente exige dos autores maior empenho”, completa.

De vítimas a criminosos

Cada pessoa que sai da unidade é vista como uma nota de dinheiro, destaca um albergado. Alguns se tornam vítimas, outros ajudam a crescer o número de estelionatários. “Os autores são captadores de vidas que serão destruídas. São uma ponte. Deve ter alguém por trás”, completa. Segundo ele, as vítimas têm consciência do que estão fazendo. “Todo mundo sabe a diferença entre o certo e o errado, mas estão tão fragilizados que enxergam como uma oportunidade. Ficam felizes quando recebem o pagamento, muitos não têm emprego. Acreditam que vão poder alugar um barraco ou usam para drogas”, relata.

Versão oficial

Procurada pelo Jornal de Brasília, a Polícia Federal afirmou, por meio da assessoria, que, “por conta da natureza do trabalho, não fornece qualquer tipo de informação a respeito de operações e investigações além do que é divulgado nos meios oficiais de comunicação”.

O delegado-chefe Raimundo Vanderly, da 21ª Delegacia de Polícia (Taguatinga Sul), explicou que o caso foi encaminhado à PF por se tratar de crime contra o sistema financeiro. “Soube dessa prática. Fui informado de que envolvia financiamentos bancários, por isso todas as investigações foram para a Polícia Federal”, conclui.

Já a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, responsável pela Unaf do Areal, informou que não tem conhecimento do “estelionato”, mas que o investigará.

Esquema  passo a passo

É tudo muito bem organizado. Primeiro, os autores do crime consultam o CPF do alvo. Se estiver limpo, partem para a negociação. “É sempre a mesma tática. Eles o levam para passear, alugam a cabeça da pessoa e já oferecem uma quantia pequena para ajudar a empolgá- la. Depois de tudo acertado, providenciam os papéis para a compra. É tudo fraudado, eles têm contatos fortes. Basta a identidade. Em seguida, a vítima assina e eles já partem para uma instituição financeira”, detalha um ex-albergado.

Depois da compra, as vítimas desaparecem. Voltam às cidades de origem, alugam casas longe dali ou voltam para o mundo das drogas.

Outro ex-albergado só não caiu no golpe por falta de oportunidade. Ele chegou a aceitar o empréstimo, mas, na hora de assinar o “contrato”, seu nome já estava sujo. “Com o dinheiro, eu ia comprar droga e voltar para o interior. Queria ficar pescando lá na minha cidade”, conta o rapaz, que já foi acolhido umas seis vezes.

Ele sabe que a quantia não mudaria sua vida, mas, na atual situação, seria um recomeço. “Ajudaria muito. Já me ofereceram várias vezes, é tentador. Eu ficaria com o nome sujo por pouco tempo e qualquer coisa que quisesse comprar, compraria com dinheiro”, avalia.

Atualmente, ele faz bico como ajudante de pedreiro, mas está sem trabalhar há dias. “Por isso, é tão tentador. Da última vez, me ofertaram R$ 5 mil. Em troca, eu deveria comprar um carro”, concluiu.

Crime conhecido na área

Moradores e funcionários da unidade sabem do esquema na porta da Unaf. “As pessoas que estão do lado de fora do albergue já estiveram lá dentro. Também tem gente que está acolhida, mas passa o dia inteiro lá. A comunidade acha que eles estão esperando vaga, mas não é. O grupo recebe abordagem com frequência, eles são sempre questionados se querem ser acolhidos. São moradores de rua da região, fizeram dali um ponto estratégico de tráfico de drogas e estelionato”, explica uma moradora, que frequenta e conhece o funcionamento da unidade.

De acordo com ela, eles aliciam as vítimas para fazer compras fictícias. “Ali eles fazem o contato, seja com os acolhidos ou com gente de fora da cidade. As vítimas vendem o próprio nome. Fazem créditos altíssimos”, lamenta a moradora. Ela conta que várias ocorrências já foram registradas na delegacia, mas a polícia precisa de flagrante.

“O último caso que denunciei foi em uma loja de departamento. Eles convenceram um idoso da Bahia a comprar celular, micro-ondas, enfim, R$ 2,3 mil no nome dele. Depois, não lhe pagaram nada e ainda o ameaçaram. Foi tão grave que eu mesma tive que levá-lo para a rodoviária. Ele voltou para casa, estava com muito medo”, comenta.

Ofereceram R$ 600 ao homem. “Ele disse que mandaria o dinheiro para a filha e a esposa, mas foi embora com a conta. Se um dia quiser comprar qualquer coisa em seu nome, terá de pagar a dívida”, aponta.

A moradora também acredita que exista uma organização acima dos estelionatários. “Eles são intermediários. Está na cara. Tem alguém por trás. Eles não têm porte para chegar em uma loja e fazer compras. Normalmente, escolhem objetos fáceis de vender”, conclui.

 

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