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Brasília

Catarata. Os invisíveis aos olhos da saúde pública

Arquivo Geral

26/02/2018 7h00

Ana, 70 anos, sempre trabalhou como costureira, e agora chega a dispensar alguns serviços pela dificuldade em enxergar. Foto: Breno Esaki/Jornal de Brasília

Jéssica Antunes
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A costureira Ana Rodrigues, 70 anos, dispensa trabalhos nas cores escuras. O diagramador Eurípedes Romão, 62, fica a dez centímetros do monitor do computador. Os dois, que exercem as profissões a vida inteira, estão com a rotina e os serviços comprometidos por conta de catarata. Uma camada branca sobre os olhos intensifica a cada dia o problema progressivo e perigoso. Eles acreditavam que estavam na lista para cirurgia na rede pública, mas ainda nem chegaram a ela. Sem prazo ou previsão para operação, ambos correm o risco de ficarem cegos.

Segundo a Secretaria de Saúde, 1.450 pacientes aguardam pela retirada da catarata e inserção de uma lente. São 12 especialistas nesse tipo de operação na rede. No ano passado, houve em média cinco procedimentos por dia, que somaram 1.726. O problema é chegar à fila: o enfermo têm de passar por dois médicos antes de ser encaminhado para a operação.

“O paciente passa por um oftalmologista geral, que diagnostica a doença. O médico o encaminha para a confirmar o diagnóstico no ambulatório de catarata com um especialista, que só então insere o nome na fila para cirurgia. O gargalo está na consulta para confirmar a doença”, explica Cassiano Rodrigues, responsável técnico distrital de oftalmologia. A pasta não informou quantos estão nessa fase nem quantos médicos há na rede.

Para resolver o problema, um novo protocolo de fluxo deve começar em cerca de três meses. Qualquer oftalmologista poderá diagnosticar a doença e, mesmo que eles não operem, passarão a encaminhar o paciente diretamente para a fila, e também pedirão exames pré-operatórios. “Todos os interessados integrarão uma mesma fila, que deve acabar com as discrepâncias atuais e ser mais próxima da realidade”, afirma o médico. Hoje há uma fila distinta em cada unidade que faz as operações: Hospital de Base e hospitais regionais de Taguatinga e Asa Norte.

Às escuras

A catarata da costureira Ana Rodrigues interfere no trabalho.“Tenho dificuldade para enxergar e não estou dando conta de lidar com tecidos de cores escuras”, lamenta. Em um posto de saúde em Ceilândia, ela conseguiu encaminhamento para consulta, ocorrida quatro meses mais tarde, no Hospital de Taguatinga. Quando a doença foi constatada, a indicação era de cirurgia imediata.

“Era 27 de março de 2017. O médico disse para não fazer óculos porque deveria esperar ser chamada para a operação, mas desde então nada aconteceu”, reclama. Ana está há quase um ano sem qualquer notícia. A Saúde, porém, nega que ela esteja inserida na fila. Em vez disso, diz que ela aguarda consulta em Oftalmologia Geral.

Eurípedes Romão, por sua vez, convive com a doença há oito meses, mas foi no último trimestre que a visão piorou consideravelmente. “Amanhece mais escuro e os olhos ficam grudados. Tenho dor de cabeça todo dia”, conta. Ele já não consegue pegar ônibus sem ajuda. “Tive que parar de dirigir. Espero a parada ficar cheia para identificar o ônibus certo. Já perdi muito transporte assim”, relata. No trabalho de diagramador, ele se aproxima ao máximo da tela do computador. Ainda assim é difícil.

“Passou dos 50 anos, é descaso total. O tratamento é pior”, acredita o paciente, que não tem informações sobre a fila. “Ninguém diz quantas pessoas tem na frente, só que tem gente demais. A cirurgia de catarata custa mais de R$ 10 mil e não posso pagar”, lamenta.

Bagunça compromete a transparência

Questionada acerca do caso do diagramador Eurípedes, a Secretaria de Saúde informou que ele também não está na fila. O paciente ainda aguardaria consulta desde dezembro passado. De acordo com o oftalmologista Cassiano Rodrigues, os postos de saúde podem apontar em qual fila está o paciente, mas não dá para saber quanto vai demorar.

“Depende de grau de emergência estipulado de forma justa dentro do contexto e dos critérios para agendamento. A fila de regulação não pode ser burlada”, garante. Alguns pacientes, diz, nunca conseguem ser contatados.

Problema não é isolado

Francisca Rodrigues da Silva, 54 anos, conseguiu fazer a cirurgia de catarata graças a um convênio entre uma unidade particular e a uma entidade civil de direito privado. Mas espera, desde 2013, por uma consulta oftalmológica para acompanhar uma fissura na retina e realizar nova operação. Em outubro daquele ano, ela se consultou com um médico que orientou retorno em um ano. Quando voltou, porém, já não conseguiu atendimento com ele.

Desde 30 de março de 2015, ela aguarda pela nova consulta. “Tenho classificação de risco amarela, prioridade 1, com urgência no atendimento. Ainda assim continuo esperando. Ano passado ligaram perguntando se eu ainda estava na fila, mas não resolveram nada”, reclama. O risco é de que a retina se rompa e, como é portadora de diabetes, ela pode ficar cega. A mulher chegou a ir pessoalmente ao Hospital de Base duas vezes pedir informações, sem sucesso.

A Saúde reconhece que a paciente é atendida há cinco anos, e diz que ela realizaria acompanhamento anual em oftalmologia geral, a despeito do relato de anos sem ser chamada. A pasta declara que Francisca está na fila para consulta na especialidade de Retina Geral, mas não informou desde quando.


“Meu caso requer urgência no atendimento. Ainda assim continuo esperando. Não resolvem nada”. Francisca Rodrigues da Silva, 54 anos. Foto: Kleber Lima/Jornal de Brasília

Apoio da rede privada

Prometendo acelerar o atendimento, a pasta informou que lançou, na semana passada, um edital de credenciamento para contratação de empresa conveniada que também passará a ofertar as cirurgias. As empresas têm 30 dias para apresentar proposta.

“Diferentemente de modelos como a Carreta da Visão, isso vai permitir um acompanhamento dos pacientes. São clínicas estabelecidas que devem tomar conta do operado por seis meses. É mais seguro e uma medicina de qualidade. Se der certo, vai diminuir a demora no fluxo, já que todos estarão baseados na mesma fila”, espera Cassiano Rodrigues.

A Carreta da Visão, citada pelo especialista, foi suspensa em dezembro de 2014 pela Justiça por suspeita de superfaturamento e malversação de dinheiro público após menos de um ano de funcionamento. O serviço era oferecido entre 6h e 17h, diariamente, por uma equipe de nove médicos e apoio de 65 profissionais.

Em seis meses, foram feitas 65,9 mil consultas e 41,5 mil cirurgias. Na época, a pasta apontou que o serviço quase zerou a fila de espera por cirurgias na rede pública, que caiu de 31.257 pacientes para 274. Para o responsável técnico distrital, havia falha no acompanhamento. “Pacientes chegaram a morrer”, afirma Cassiano Rodrigues.

Saiba mais

Segundo o Conselho Brasileiro de Oftalmologia, a catarata ocular é uma doença em que a lente natural dos olhos perde a transparência e começa a ficar opaca, atrapalhando a entrada de luz nos olhos.

Essas as alterações podem levar desde pequenas distorções visuais até a cegueira. Àquela relacionada a idade, classificada como catarata senil, a correção cirúrgica é a única opção para recuperação.

São vários os fatores de risco que podem provocar ou acelerar a doença. O CBO lista como exemplos medicamentos, substâncias tóxicas, doenças metabólicas como diabetes, traumas renais, infecção durante a gestação e até fatores nutricionais.

Segundo informações do Ministério da Saúde, a cirurgia consiste em colocar uma lente, que é um novo cristalino artificial. O índice de recuperação satisfatória chega a 90%: feita a cirurgia, o paciente volta a enxergar. Essas lentes não precisam ser trocadas.

Defensoria

Diante da falta de transparência e de perspectiva, pacientes buscam cada vez mais o auxílio da Justiça pela garantia do direito fundamental à Saúde, previsto constitucionalmente.

Em 2017, o Núcleo da Saúde da Defensoria realizou um total de 26.803 atendimentos para todos os assuntos que envolvem saúde pública. Dentre eles, 2.700 resultaram em ações judiciais.

O acesso a cirurgias foi, no ano passado, o segundo maior motivo de buscas da população (4.854 pessoas) e o terceiro em número de ações (379).

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