Governos de todos os matizes políticos adotaram, nos últimos anos, um poderoso instrumento de concentração de renda: aumentos salariais para servidores públicos, especialmente para os mais bem remunerados, em níveis superiores aos da inflação. Esse programa de concentração de renda teve e ainda tem o contraditório apoio de partidos que se colocam à esquerda, como o PT, o PCdoB, o PDT e o PSol.
Em Brasília, a política de aumentar a remuneração de servidores públicos sem levar em conta o cenário financeiro, as disponibilidades orçamentárias e a realidade dos serviços prestados à população – deficientes em quantidade e qualidade – é praticada há muitos anos, mas ganhou força no governo de Agnelo Queiroz, do PT.
É assim que se chegou ao quadro atual, em que 77% das receitas do governo de Brasília são destinadas a remunerar 7% da população — os servidores públicos.
Não é hora de reivindicar nem de conceder
Isso não quer dizer que os salários e benefícios recebidos pelos servidores não possam melhorar. Algumas categorias, como a dos professores, deveriam ser mais bem remuneradas. Mas outras, em contrapartida, têm salários muito elevados. Há inúmeras injustiças.
A realidade é que os funcionários do governo de Brasília, inclusive os relativamente mal remunerados professores, têm salários superiores aos de servidores dos 26 estados – salvo poucas exceções – e muito acima do que pagam as empresas privadas na maioria das carreiras.
Em um momento de crise financeira e recessão na economia, não tem sentido esses servidores reivindicarem aumentos e, muito menos, o governo concedê-los.
Opção preferencial pelos que têm mais
Os partidos à esquerda fazem a defesa incondicional de aumentos salariais para servidores públicos, inclusive para os que hoje já recebem valores próximos ou superiores ao teto. Partem de princípios corretos, sobre as lutas dos trabalhadores e sindicatos por melhores condições de vida e de trabalho, para chegar a conclusões incorretas.
Não se pode desconhecer a realidade de que cada aumento a servidores significa menos dinheiro para que o Estado atenda aos que precisam de seus serviços: o conjunto da população e em especial os mais pobres. Ao fazer a defesa de aumentos para servidores, inclusive para os já bem remunerados, os partidos à esquerda fazem opção por uma parcela da alta classe média em detrimentos dos pobres e miseráveis.
Nada de apoio incondicional
Há, porém, na esquerda, quem procure romper com essa visão equivocada e elitista e proponha aos companheiros uma reflexão sobre o assunto. É o caso de Cid Benjamin (foto), filiado ao PSol no Rio de Janeiro, que participou das ações armadas contra a ditadura e da fundação do PT e esteve na semana passada em Brasília para lançar seu livro Reflexões Rebeldes.
Cid faz três perguntas instigantes, ainda mais partindo de um quadro histórico: um partido de esquerda deve apoiar toda e qualquer luta dos trabalhadores? Deve apoiar toda e qualquer forma de luta adotada pelos trabalhadores? Um partido ou governo de esquerda devem avaliar uma luta de trabalhadores com a mesma ótica de um sindicato?
A resposta de Cid às três perguntas é não.
Transparência para definir prioridades
Cid admite que há lutas justas de servidores por reajustes salariais. “Mas, às vezes, se forem somadas as pretensões salariais de várias categorias de servidores, o total dos gastos ultrapassa 100% do orçamento da prefeitura ou do estado”. Ele pergunta: “É o caso de se apoiar automaticamente essas reivindicações? ”
A resposta é outra pergunta: “Não será mais razoável, em tempos de internet, exigir a abertura das contas públicas e, a partir daí ter um debate aberto sobre prioridades no uso dos recursos? ” Pois não adianta dar aumentos a servidores se eles não tiverem condições adequadas para atender à população: equipamentos funcionando em hospitais e escolas, sistemas de informática atualizados, ambulâncias e viaturas policiais em boas condições, recursos para pagar prestadores de serviços e assim por diante.
Greve não é única forma de luta
“Há greves e greves”, diz Cid: “Paralisações por tempo indeterminado, feitas por funcionários públicos que prestam serviços diretamente para a população, acabam prejudicando os usuários dos serviços. E nem sempre pressionam eficazmente os governantes”.
Ele propõe formas alternativas de mobilização, que considera mais eficazes e menos prejudiciais à população que precisa de atendimento médico, porque não tem planos de saúde; de escolas públicas, porque não pode pagar as privadas; de transporte coletivo, porque não tem carro ou não pode usá-lo diariamente; de segurança, porque mora em regiões mais violentas, entre outras coisas.
A população acaba se opondo às greves por estar sendo prejudicada. “Com criatividade, há outras formas de luta, passíveis de serem adotadas, com maior ganho para o movimento e menor custo para a população que usa serviços públicos”, diz.
É preciso coragem para mudar
O militante do PSol também questiona o fechamento de vias por longo tempo como forma de luta, atos que tendem “a jogar a população contra o movimento” e “mais atrapalham que ajudam”. E encerra seu artigo reconhecendo que alguns o acusarão de estar fazendo “o jogo da direita”. Mas, ou a esquerda tem coragem para fazer esse debate “ou ficará refém de corporativismos que, no fundo, não servem à luta dos trabalhadores, prejudicam a população e enfraquecem os serviços públicos”.