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Brasil

Após denúncias, silêncio impera na pequena Abadiânia

Arquivo Geral

11/12/2018 7h00

Foto: Myke Sena/Jornal de Brasília.

Jéssica Antunes
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Silêncio. Diante do escândalo envolvendo seu cidadão mais ilustre, a orientação dada dentro da Casa Dom Inácio de Loyola parece ter se estendido a toda a cidade de Abadiânia. No interior de Goiás e a cerca de 115 quilômetros de Brasília, o município que se tornou poliglota com a presença de tantos turistas estrangeiros vive a ressaca das denúncias contra João Teixeira de Faria. O médium, conhecido como João de Deus, é acusado de abusar sexualmente de mais de duzentas mulheres durante atendimentos espirituais. Para dar conta dos relatos, o Ministério Público de Goiás criou uma força-tarefa.

A cidade que tem quase 19 mil habitantes, típica de interior, não tem atrativos de lazer ou turismo. Há mais de 30 anos, vive em torno dos atendimentos espirituais que acontecem de quarta a sexta-feira, das 8h às 12h e das 14h às 17h, em uma construção azul e branca de mais de 12 mil metros quadrados localizada na rua principal da parte mais nova da cidade. É a principal fonte de renda na região, que aglomera pousadas e lojas de artesanato para receber pacientes de todo o mundo.

No primeiro dia útil após o escândalo tomar manchetes de todo o País, a rotina não foi alterada. Táxis entravam e saíam, a todo momento, das dependências do complexo. Do banco do passageiro, saltavam pessoas religiosamente vestidas de branco, atendendo a solicitações do centro.

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Município bilíngue: um grande número de visitantes não fala português. Foto: Myke Sena/Jornal de Brasília.

John of God
Durante o dia, a maior parte dos visitantes não falava português. O comércio, preparado, usa o inglês em cardápios, fachadas, anúncios e recados para quem vai visitar John of God.

Semanalmente, cerca de 2 mil visitam o local em busca de cura física, emocional ou espiritual. Segundo as contas da própria entidade, mais de nove milhões de pessoas já atravessaram aquelas paredes. Entre eles, famosos como a apresentadora americana Oprah Winfrey e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em tratamento de um câncer na laringe.

Bem longe dos holofotes, a romaria diária custa a acreditar nas denúncias feitas na última semana. Após a multiplicação de relatos criminosos, a imprensa não é bem recebida. Eles temem “manchar a história” da pequena cidade famosa com qualquer relato. Aqueles que se dispõem a falar moram distante ou preferem manter a identidade em sigilo, ainda que não digam nada comprometedor.

“Tenho muito respeito pela casa e por meu tempo aqui. Só levo coisas boas. Se estão fazendo algo errado tem que ser investigado, é natural”, diz um estadunidense de 55 anos que passa uma temporada no interior do cerrado para crescimento espiritual. Ele chegou até ali por indicação de uma amiga, também estrangeira, que diz ter se curado de um câncer cerebral.

Investigação necessária
A dona de casa Maria Aparecida, 45 anos, trabalhou por quase 20 anos para João de Deus. “Nunca vi nada que indicasse algum problema e não preciso mentir porque já não dependo dele. Sempre me tratou muito bem, com muito respeito. Se tivesse acontecido algo comigo ou com quem conhecesse, eu teria denunciado”, conta. Ela diz ter recebido os relatos de abuso com surpresa e acredita que as investigações devem ser cautelosas.

“É preocupante”, pensa o ex-instrutor de autoescola Pedro Paulo Lopes, 51. Há dois anos ele se mudou de Brasília para o município goiano. O homem acredita que as denúncias precisam ser investigadas, mas questiona por que os relatos surgiram depois de tanto tempo: “É poderoso mas não é Deus”, destaca.
Para Paulo, o comércio é a área que mais deve sentir o impacto do golpe do escândalo. “Eles dependem de João de Deus”, diz.

Maria Aparecida, 45, trabalhou por quase 20 anos para o médium: “Sempre me tratou muito bem, com muito respeito”. Foto: Myke Sena/Jornal de Brasília.

Economia pode ser afetada
“Abadiânia tem muito a perder com essas denúncias”, aponta um taxista. Em dez anos de profissão, ele garante que nunca ouviu sequer um desabafo dentro do carro. “Tomara que tudo se esclareça. Uma coisa dessas afeta todo mundo, mesmo indiretamente”, diz. Concorda com ele uma comerciante de 46 anos que fatura com vendas de roupas brancas e artesanatos. No entanto, ela custa a acreditar que os relatos sejam totalmente verdadeiros.

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“Estamos mais tranquilos porque nunca tínhamos ouvido nada do tipo. Cidade pequena, sabe como é, todo mundo acaba sabendo de tudo, ainda mais se são tantas vítimas”. Para ela, os depoimentos são “estranhos” e até “fantasiosos”. A própria mulher esteve várias vezes em companhia do médium. “Tenho um amigo que se curou de um tumor do tamanho da laranja no pâncreas”. A vendedora fala até em armação.

Nem todos compram a hipótese. “Agora estourou, mas o povo sabe. Todo mundo sabe, mas tem medo de falar. Ele é muito poderoso, tem muito apoio. O mundo inteiro conhece como uma pessoa boa, mas é complicado. A gente sabe das coisas erradas que acontecem”, revela outro comerciante, 50 anos. A conversa foi interrompida com a chegada de um vizinho porque, segundo o homem, havia deixado de ser seguro falar sobre o assunto.

O prefeito José Aparecido Alves Diniz acha precipitado fazer qualquer tipo de avaliação em relação às consequências das denúncias e da possibilidade de comprovação. “O mundo tomou conhecimento dos relatos de sexta para sábado. Eu faço parte do mundo. Estou na expectativa de saber o que vai acontecer a partir de quarta, quando os atendimentos forem retomados, para me pronunciar”, disse.

Comércio da pequena cidade de Abadiânia gira em torno das atividades da Casa Dom Inácio de Loyola. Foto: Myke Sena/Jornal de Brasília.

Rede de investigação
O Ministério Público de Goiás (MPGO) confirmou que João de Deus é investigado pelo órgão desde o primeiro semestre, quando a procuradoria de Abadiânia começou a receber denúncias, encaminhadas à diretoria Geral da Polícia Civil, que deu início ao inquérito em outubro. O escândalo estourou no último fim de semana, quando os primeiros relatos foram divulgados pelo programa Conversa com Bial e pelo jornal O Globo.

Com a multiplicação de denúncias, o órgão disponibilizou um canal institucional para receber novos relatos e instituiu força-tarefa com quatro promotores para investigar. “Sabemos que há vítimas de outros estados e de fora do País. Não será necessário que elas venham até Goiás. Elas podem prestar depoimento no Ministério Público local. Já há uma coordenação nacional”, disse Luciano Miranda Meireles, coordenador da Centro de Apoio Operacional Criminal do MPGO.

Para auxiliar, foi criado o e-mail [email protected]. Tudo o que surgir a partir de agora será investigado. É o órgão goiano, porém, quem deve centralizar as apurações. Em sete horas, o canal recebeu 35 contatos. Outras cinco foram pessoalmente ao MPGO. Depoimentos estão agendados em Minas Gerais e São Paulo. No DF, ainda não há notificação oficial de vítimas.


“Tem que pagar pelo que fez”
Ao JBr., uma moradora de Valparaíso de Goiás relatou abuso sofrido em atendimento espiritual há 19 anos. A mulher, atualmente com 41, disse que procurou o médium com um quadro de depressão e foi obrigada a apalpar o órgão sexual do religioso. “A máscara finalmente caiu”, comemorou após as denúncias começarem a vir à tona. Em novo contato com a reportagem, ela informou que mandou mensagem ao e-mail disponibilizado pelo Ministério Público de Goiás para oficializar as denúncias. “Tem que pagar pelo que fez”.


Silêncio institucional
Após veiculação da reportagem na Rede Globo, a assessoria de imprensa do médium considerou “muito grave” a emissora ter divulgado as denúncias, que qualificou de “lamentáveis” e “fantasiosas”, e sobre as quais alegou que não foi fornecida “nenhuma prova”. Em comunicado, questionou “por que” as supostas vítimas “não procuraram as autoridades policiais ou o Ministério Público”.

O JBr. não foi atendido pela assessoria do médium e o advogado Alberto Toron, que atende João de Deus, não retornou aos contatos.

Saiba Mais
» João Teixeira de Faria nasceu em Cachoeira de Goiás, em junho de 1942. Filho de alfaiate, costuma dizer que os dons começaram a aparecer quando tinha 9 anos. Apadrinhado por Chico Xavier, serviu de médium para cura espiritual pela primeira vez aos 16 anos.

» João de Deus recebeu a alcunha em 1977. Ele diz incorporar 30 doutores, realiza cirurgias espirituais e promove passes, mas se considera católico. O religioso foi ordenado padre pela Full Life Fellowship, uma organização religiosa americana que reúne diversas igrejas cristãs.

» O homem frequentou a escola apenas até o segundo ano do ensino fundamental, e diz não saber ler nem escrever. E não vive na vizinhança, mas em Anápolis, a 40 quilômetros de onde atende.

» A Casa Dom Inácio de Loyola foi fundada em 1976. Ali, há lanchonete e uma loja de venda de artigos espirituais, livros e farmácia com uma água considerada energizada e um medicamento manipulado que custa em média R$ 50.

» Há pelo menos dois processos abertos contra ele. Em 2012, o médium foi denunciado pelo Ministério Público de Goiás por abuso sexual, mas, por falta de provas, a Justiça o considerou inocente.

 

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