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Morando Fora

No dia da Consciência Negra, falemos sobre a pele vulnerável de um migrante

Arquivo Geral

20/11/2018 9h15

Atualizada 04/02/2019 20h43

Divulgação

Você pode ser branco, ter olhos azuis, ser de classe média alta. Mas virou estrangeiro, integrou a categoria de grupos vulneráveis e minoritários. Pode ser que você não se sinta assim, tenha vindo para o exterior com uma posição de trabalho maravilhosa ou até mesmo nem se misture muito com os locais, o que oferece uma falsa proteção, mas menor exposição a situações mais difíceis. Mas o fato é que, assim como mulheres, crianças, homossexuais e negros enfrentam desvantagens perante à sociedade, viver na pele de um forasteiro, principalmente advindo de um país em desenvolvimento, te transforma em um ser vulnerável, que enfrenta duras desigualdades, preconceitos ou dificuldades culturais.

Se você acha que é exagero, deve ser porque nunca morou fora ou porque teve sorte e está incluído na minoria dessa classe, a dos indivíduos que migraram e nunca tiveram qualquer problema, desajuste ou rejeição durante o processo migratório.

Tive essa sensação ao ler o livro “Na Minha Pele”, de Lázaro Ramos, da Editora Objetiva, que compartilha episódios íntimos do ator e reflexões sobre ser negro no Brasil. Tomo emprestada a frase de Lázaro, ao justificar seu lugar diferenciado na sociedade e no teatro, já que ele obteve sucesso e destaque: “para mim, que vivi personagens tão diversos, ficar falando sobre esse assunto pode parecer incoerente. Mas, volto a dizer, essa é uma experiência de exceção que só confirma a regra. Quantos tiveram esse privilégio?”, questiona.

Conforme o autor relatava seus pensamentos e experiências, não podia deixar de pensar: muitos migrantes no mundo e negros no Brasil vivenciam situações muito semelhantes. Mudam os números e proporções, os atores sociais e os ambientes, mas o preconceito, a desigualdade, às vezes a falta de oportunidades e o racismo e xenofobia estão lá, sempre presentes, à espreita, esperando a primeira oportunidade para vir à tona.

Basta tomar o elevador social, no caso dos negros; basta abrir a boca e falar com sotaque ou disputar uma vaga de emprego que demande um diploma, no caso do migrante. Nessa hora, o abismo que te diferencia aparece. Mais uma vez eu digo: essa diferenciação não acontece para todo mundo, tem migrante que consegue ultrapassar essa barreira muito bem. Mas, para uma grande parte, existe um muro bem alto a ser escalado.

A população negra é a mais afetada pela desigualdade e pela violência no Brasil, alerta a Organização das Nações Unidas (ONU). Apesar dos muitos benefícios de se mudar de país, os próprios migrantes permanecem entre os membros mais vulneráveis da sociedade, informa o documento sobre Migração de 2015 da ONU. No mercado de trabalho, negros e pardos enfrentam mais dificuldades na progressão da carreira, na igualdade salarial e são mais sujeitos ao assédio moral, afirma o Ministério Público do Trabalho.

E para traçar o paralelo, ainda de acordo com o documento, os migrantes são frequentemente os primeiros a perder o emprego em caso de recessão econômica, trabalhando frequentemente por salários menores, por mais horas e em piores condições do que os trabalhadores nacionais.

A professora Yvonne Riaño, professora da Universidade Berna e de Neuchatel, na Suíça, mapeou em alguns estudos, a problemática do grupo de mulheres latino-americanas naquele país com relação à acessibilidade do mercado de trabalho. De acordo com a pesquisa, o capital cultural dos emigrantes é desvalorizado: os certificados do país de origem não são reconhecidos; experiências profissionais e certificados de fora da Europa são menos valorizados devido à falta de informação e ao preconceito cultural. Preconceitos sobre estereótipos de origem e gênero relacionados a competências técnicas podem possibilitar o acesso a empregos no mercado de engenharia e construção. A pesquisa foca na Suíça, mas basta conversar com brasileiros vivendo em outros países para detectar a mesma situação.

Em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, o dobro do que os negros: R$ 1.589, ante R$ 898 mensais. De acordo com a ONG britânica Oxfam, o Brasil só alcançaria equiparação salarial entre negros e brancos em 2089, 200 anos depois da abolição da escravidão. A conta é feita com base em dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

No livro, mais exatamente na página 62, Lázaro conta que o “racismo prega peças, faz você desejar a identidade do outro”. Vejo isso também com brasileiros que vivem no exterior. Com a identificação cultural muitas vezes não aceita pelos locais, começam a desprezar as raízes brasileiras, não querem contato com outros conterrâneos, não ensinam aos filhos a sua língua, mais ou menos parecida com a tentativa de alguns negros em não quererem ser chamados de negros.

Sobre esse assunto, tenho meu respeito por esses cidadãos, que infelizmente não têm muita força para enfrentar o mundo com a cor da pele escura ou com o sotaque que carregam.

Eu entendo que ser aceito na nova sociedade é duro, sofrido, tanto para o estrangeiro que conseguiu adentrar ao grupo dos locais quanto para o negro que galgou uma posição social. E quando se consegue ocupar um espaço, muitos usam como escudo a negação às suas raízes.

Escutei outro dia de uma senhora de 70 anos uma frase que me deu mais empatia com relação a essas pessoas que negam as raízes: “até bem pouco tempo atrás, quem não alisava cabelo não arrumava emprego. Tem muita gente que gostaria de deixar crespo mas tem medo de não ser aceita”. Então trago essa frase para a realidade do migrante.

E aí Lázaro Ramos arrebata com a frase: “o que me faz pensar como a cor da pele é, sim, uma espécie de patrimônio, que te faz conquistar inclusive postos e vozes de comando – não importa se um branco dá a você um conselho amistoso ou uma ordem, é ele que está no controle”.

Lembrei inúmeras vezes em que senti que alguém estava me fazendo entender que eu tinha licença ou até mesmo que deveria agradecer por estar num lugar que, ao que parece, não me pertencia. Falo por não só por mim, mas por várias pessoas que entrevisto há anos.

Esse traço de racismo brasileiro é tão perverso. E é muito difícil de comprovar, pois está numa frase enviesada, num olhar dissimulado e em ações que se tornaram naturais”. Se trocarmos a palavra “negro” por “estrangeiro”, tenho certeza de que muitas pessoas terão passagens que se encaixam.

O migrante pode ser esse novo negro, o ponto fora da curva, aquele trabalhador pronto para fazer o que ninguém mais quer. Se o livro de Lázaro se propõe a propagar maior vigilância e atenção ao outro, eu sugiro aceitação das suas raízes, das suas cores, apoio mútuo e mais que tudo, humildade para reconhecer que, dependendo do lado da fronteira em que você está, vai parecer mais ou menos importante e digno.


Liliana Tinoco Bäckert é jornalista e tem mestrado em Comunicação Intercultural pela Universidade da Suíça Italiana. Carioca, tem dois filhos, é casada com um alemão e vive naquele país desde 2005, onde também trabalha como treinadora intercultural independente. Decidiu transformar o próprio choque cultural em combustível para ajudar outros brasileiros que já vivem fora ou que pretendem se lançar nessa aventura globalizada.

 

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