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Mídias e Identidade

O general brasileiro e o “mandato” da ONU no Congo

Arquivo Geral

26/11/2018 20h30

Credito:Imagem obtida na página do Facebook do entrevistado

 

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz retornou, em 2016, de uma missão um tanto diferenciada do ponto de vista do ambiente dos chamados capacetes azuis, uma vez que esteve à frente de uma tropa de aproximadamente 20 mil homens que tinham mandato (ordens) para não se restringir a patrulhamento e monitoramento, ou seja, tinha prerrogativas de dar combate aos rebeldes do Congo.

Santos Cruz foi lembrado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para chefiar a missão no continente africano em razão do êxito que obteve quando comandou a Minustah, no Haiti de janeiro de 2007 a abril de 2009. À época houve repercussão no Brasil e internacionalmente os confrontos que os capacetes azuis tiveram com as streets gangs haitianas, que foram debeladas.

Quando o convite para chefiar a missão no Congo foi feito, Santos Cruz já tinha passado à reserva, o que provocou uma situação atípica. O Exército Brasileiro o reintegrou no mesmo postos, ou seja, general de divisão, para enviá-lo à África.

Essa entrevista me foi concedida em Brasília, na Asa Norte, no apartamento, onde o general da reserva reside com a esposa e os filhos, no primeiro semestre de 2016. Por varias razões, permaneceu inédita. Vi Agora com a confirmação de Santos Cruz para ser Secretário de Governo do governo Bolsonaro uma oportunidade de divulgar o texto.

 

 

Imagem obtida na página do Facebook do entrevistado

 

 

Em que atividades o senhor estava antes de ir para o Congo?

A última função no Exército foi a de subcomandante do Comando de Operações Terrestres (COTer). Depois, trabalhei por um pequeno período na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência (SAE), onde eu estava quando veio o convite da ONU. Eu já estava na reserva, fui reintegrado à ativa do Exército com o propósito de seguir para o Congo.

 

No mesmo posto?

Sim, como general de divisão

 

A indicação da ONU para atuar no Congo veio em função de sua passagem pelo Haiti, não é isso?

Sim, com certeza. Estive no Haiti de janeiro de 2007 a abril de 2009. O país vivia o momento mais intenso de confronto do governo local com as chamadas streets gangs. Tivemos sucesso em promover operações que debelaram aqueles grupos. As tropas que estavam sob meu comando eram muito boas.

 

É possível comparar o que vivenciou no Haiti com a experiência no Congo?

É um pouco difícil, pois a dimensão do problema no Congo é bem diferente do problema no Haiti. No Congo foi completamente diferente. O país tem 75 milhões de habitantes e um histórico marcante de violência. Ficou na memória da população o genocídio de 1994 que envolveu a luta entre tutsis e hutus, conflito que gerou milhões de refugiados que deixaram Ruanda para se refugiarem no Congo. Os problemas étnicos foram potencializados.

Penso que a lembrança de meu nome para atuar no país, de fato, ocorreu pelo que tinha acontecido no Haiti. Nós demonstramos bastante determinação e isso possibilitou desmantelar os grupos criminosos. O quadro era mais concentrado em Porto Príncipe, a capital. As gangues não permitiam a presença do Estado em algumas áreas. Atuamos com muito zelo porque 99% da população era de pessoas boas, normais. Isso requer uma atuação muito seletiva.

 

No Haiti como era composta a tropa sob seu comando?

Havia militares do Brasil, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai, Nepal, Siri Lanka, Filipinas, Jordânia e Chile, um efetivo aproximado de 7,2 mil homens. Além desse quadro de combatentes, contávamos com o apoio de policiais militares da Guatemala.

 

Do ponto de vista cultural, quais foram os desafios em comandar um efetivo tão diverso?

Nunca tive dificuldade para comandar, pois os valores militares são os mesmos no mundo inteiro. De modo geral, os soldados estão acostumados com estruturas hierárquicas, portanto na cultura militar essa convivência é muito simples. E no caso do comandante o que importa é estar junto, pois é o que leva os subordinados a acreditarem em você.

Outra coisa diz respeito ao nível dos componentes da missão. Todos que foram para a Minustah tinham sido treinados para representar bem seus países.  Só são aceitas pessoas com muitos anos de serviço, em outras palavras, são militares acima da média de todos os exércitos.

Culturalmente é preciso muito respeito. Cito o exemplo dos jordanianos de tradição árabe e que demonstravam muito respeito pelo rei daquele país e transferem esse respeito aos seus superiores. Então, era importante entender e valorizar isso, participar das atividades com eles. Assim também como estar presente em atividades culturais e militares de contingentes de outros países.

 

No Congo quais eram as suas ordens, quero dizer, o que determinou a ONU?

Todas as missões são regidas por mandatos do Conselho de Segurança. Foram duas as mais importantes: proteger os civis e neutralizar os grupos armados.

Inicialmente, o problema desafiador foi libertar a cidade de Goma, que tem cerca de um milhão de habitantes. O local havia sido ocupado pelo M-23, o grupo armado mais forte já organizado no Congo. O grupo tomou a cidade de Goma em razão do recuo do Exército do Congo. Esse fato gerou um desprestigio para a ONU na época.

Nós tínhamos um Mandato bastante forte, expressando as ordens do Conselho de Segurança de que era preciso neutralizar os grupos armados, proteger a população e, em consequência, restaurar o prestígio da ONU.

 

 Isso significa que os capacetes azuis sob seu comando tiveram um papel operacional, o que em princípio não é comum em missões da ONU?

Proteger a população é uma obrigação moral. Você não pode se omitir de socorrer quem está sendo massacrado. Há, portanto, uma questão moral e legal. Você tem que interferir. A ONU nunca fez restrição a isso. Aliás, onde o pessoal de força de paz mais sofre crítica é quando é acusado de omissão. Claro que é preciso fazer a coisa certa, de acordo com o direito internacional.

 

Houveram combates?

Sim. Vários. Liberar Goma foi o ponto central. Nós conseguimos derrotar e expulsar o M-23 das cercanias da cidade. Para tanto, houveram baixas. Depois disso, houve mais duas oportunidades de confronto, foram derrotados e fugiram para Uganda, onde, mais tarde, foi assinado um acordo.

 

 

A sua atuação teve impacto internacional, tanto que mereceu uma grande reportagem da TV Al Jazeera. A seu ver, não deveria ter mais repercussão no Brasil?

Não me interprete como herói nessa história. Os verdadeiros heróis foram os congoleses e militares da ONU, dentre eles um excelente general do Exército do Congo chamado Bahuma (falecido posteriormente) e um coronel também do Congo, chamado Mamadou (morto posteriormente em uma emboscada). A ONU, na realidade, auxiliou as tropas do Congo.

 

 

O desafio estava em enfrentar esses grupos armados?

Havia, e ainda existem, cerca de 50 grupos armados no Congo, alguns maiores e outros menores. Alguns se formaram, num primeiro momento, por motivações políticas e até religiosas, mas com o tempo se tornaram máfias.  O M-23 foi o maior e mais forte de todos, mas foi derrotado pelo Exército do Congo, com apoio da ONU em combates nos meses de agosto, outubro e novembro de 2013.

 

Como estava composto o seu efetivo no Congo?

Contava com cerca de 20 mil homens, a maior força já organizada pela ONU. Tínhamos 31 helicópteros e de modo geral muito equipamento. Os soldados eram, principalmente, da Índia, Paquistão, Blangadesh, Nepal, Marrocos, Benin, Egito, Jordânia, Ucrânia, Gana, Uruguai e Guatemala.

A chamada Brigada de Intervenção contava somente com militares de países africanos: África do Sul, Tanzânia e Malaui.

 

Do ponto de vista da linguagem militar o seu efetivo podia ser definido como uma divisão ou um exército?

Um exército de campanha, com duas divisões completas, com apoio de seis companhias de engenharia (Indonésia, Nepal, China, Uruguai, Africa do Sul e Bangladesh), artilharia, aviação de transporte e helicópteros de ataque, infantaria mecanizada e forças especiais (Guatemala, África do Sul, Egito e Jordânia).

 

E militares brasileiros?

Somente seis foram enviados para fazer minha segurança pessoal e trabalho de estado-maior pessoal.

 

 A respeito dos povos africanos com que conviveu, o que o senhor pode comentar?

Depois disso tudo, posso dizer que me sinto um pouco haitiano e um pouco congolês. A África tem um potencial imenso e os povos africanos estão fazendo sua história de maneira muito dinâmica. Me impressionou muito a própria cidade e a população de Goma. Depois da derrota do M-23, a cidade está passando por uma transformação fantástica. Você verifica milhares de automóveis novos nas ruas, construções, obras públicas, o que demonstra desenvolvimento. O aeroporto foi ampliado. Tudo isso evidencia os imensos benefícios da paz. Sobretudo em relação ao Congo, a constatação é de ser um dos países mais ricos do continente e do mundo. Sem dúvida, o destino do Congo é se destacar como um grande país.

 

De modo geral no Brasil temos poucas informações sobre o continente africano.

Sim, existe uma ideia errada sobre a África. Volto a dizer, o Congo, por exemplo, está fadado a se tornar um dos mais importantes países do mundo. Pode demorar um pouco em razão dos problemas, mas isso vai acontecer. O que eles precisam é da paz. Afirmo também que a solução para eles não será externa. As decisões tem que ser ditada por eles próprios, com soluções locais e com o apoio internacional.

 

O senhor considera isso distante?

Posso dizer que para a paz se consolidar no Congo é preciso muito trabalho. Mas eles já estão produzindo bons resultados. Estão no caminho. Todas as forças econômicas, civis e militares, a administração pública, a política. Tem que fazer a sua parte e não perder o foco na população e na infraestrutura.

 

O que é a África para o senhor hoje?

Os países que conheci e, em especial, a República Democrática do Congo, onde vivi por dois anos e meio, fazem parte da minha vida. Quando você vive, volta a estudar e reflete o que foram 350 anos de escravidão e mais cerca de cem anos de colonialismo, fica uma consideração especial pelos africanos. Visitar alguns locais, tomar conhecimento do sofrimento, alguns e muito pior do que se sabe dos horrores da idade média…  É uma história de violência absurda. Quando houve necessidade de mão-de-obra, ocorreu a escravidão e quando se buscou matérias primas, houve o colonialismo. Tudo a partir da lógica do poder do mais forte sobre o mais fraco. Então, é um desafio. Por outro lado, é animador perceber os avanços que se verifica em vários países. Há países que estão tendo um crescimento muito significativo do PIB, chegando até a cerca de 8% em alguns países dos grandes lagos africanos.

 

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